O Carnaval do Mindelo
Por Moacyr Rodrigues
Nos princípios do século XX, ainda no ano de 1916, o Carnaval estava reduzido ao entrudo. Gastava-se menos dinheiro. Tudo era mais simples. Com o tempo foi evoluindo, até que se transformou por influências várias naquilo que hoje vemos, principal-mente pelas mãos da média burguesia.
Grupos como Florianos datam de 1920, com orquestra própria. com a sua sede, fazendo os seus famosos bailes, constituído, principalmente, de pequenos funcionários públicos; outros já aparecem, como Nacional (1939), onde já surge o primeiro andor, representando o avião Lusitânia, que levou Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao Brasil em 1922, que escalou o Porto Grande; Sousa Cruz (1936) da Ribeira Bote, Grupo Monte dos Amores (1936) do Monte Sossego .
Hoje, com a evolução dos tempos, há praticamente dois tipos de Carnaval em S. Vicente, um tradicional, «no sentido de um conjunto de coisas veneráveis» que persistem no tempo, constituído por figuras e homens ou grupos de mascarados, «vestígios de complexos culturais» (Queiroz, 1992: 82) que vêm do passado, constituído por máscaras individuais, sem um figurino comum ou de pequenos grupos que percorrem as ruas da cidade, dançando e cantando.

Esse é o Carnaval da festa, onde o ritual é «um verdadeiro discurso simbólico» donde se destacam certos aspectos da realidade já apontados — «um cerimonial com um conjunto de factores sociais e históricos, combinado e recombinado, para realizar o que percebemos como carnaval antigo ou moderno,» do subúrbio ou da cidade, «dos ricos e dos pobres» (DaMatta, 1978: 29). Vêm quase sempre dos bairros limítrofes, e às vezes saem com alguns quadros identificativos do lugar de proveniência, com dizeres pícaros, crítica de costumes ou política, de feição local ou nacional, e outro tipo já com laivos de imitação, com blocos temáticos com andores que apresentam temas de carácter nacional e internacional. Este bloco, de ano para ano, vai perdendo o sentido da festa, adquirindo um carácter turístico, de luxo, dispendioso, pretendendo entrar já no grande espectáculo, o que não tem agradado a quantos que sempre se dedicaram ao Carnaval com outros objectivos: de divertimento, de chalaça e de paródia. E por se tornar cada vez mais caro, caindo na posse dos senhores do dinheiro, vai brigando com o espírito do tradicional, excluindo desta maneira os outros de participarem nele.
Normalmente, o Carnaval dos blocos de desfile é imaginado pelas pessoas da cidade e para a sua concepção e execução procuram os artistas populares suburbanos.
Houve tempo, no princípio do século XX, nos anos 30, em que pelo Carnaval, as moças que dançavam nas mas eram tidas por mulheres vulgares ou de má nota pelas elites, que apreciavam o movimento do alto das suas varandas ou das suas janelas, fenómeno semelhante ao que acontecia noutras paragens, no século anterior, em que a dança era reservada apenas às prostitutas. Testemunho dessa época é a obra do escritor, Teixeira de Sousa (1994: 9), ao apresentar-nos um quadro bastante elucidativo do Carnaval do Mindelo passado à porta do grémio, em que a dado passo da sua obra diz que «em toda a praça o gentio ululava. Por detrás das grades do Grémio Recreativo do Mindelo, cachos de crianças mascaradas espiavam o burburinho, excitadas, também elas, com o espectáculo em redor. Os senhores e as senhoras postavam-se nos degraus de acesso, nas soleiras das portas, viam-se ao peitoril das janelas, divertindo-se igualmente com a alegria e o frenesim da plebe […] Soltavam gritinhos, elas. O guarda- -portão zelava pela integridade do palacete, impedindo que a multidão trepasse para cima do murete do gradeamento ou invadisse o jardim do edifício.»
Nos anos 60, essa elite fazia os seus bailes no interior, apenas para os sócios, que nunca saíam à rua para tomar parte nos blocos. Os sócios eram admitidos, após «uma comissão permanente» de sócios ter procedido «à selecção» dos novos candidatos devido à «disciplina e compostura». Os convites traziam a marca de «pessoal e intransmissível» (Sousa, 1994: 10).
A classe da média burguesia, de pequenos funcionários públicos, de gente letrada e de negociantes de bordo, juntava-se à volta dos seus clubes desportivos e recreativos para fazer as suas festas abertas aos sócios e amigos dos sócios de passagem por Mindelo. Eram associações mais abertas, mais familiares. Nos bailes da elite apenas as crianças se mascaravam a rigor, enquanto que os mais velhos, nos seus fatos de cerimónia, usavam na festa chapéus altos ou de coco e uns aros com bigode à Adolfo Manjou. Só se mascaravam a sério, quando a máscara lhes servia para entrar disfarçados nos bailes nacionais, isto é, de toda a gente, no cinema Éden Park.
Nos clubes dos funcionários e negociantes de bordo, as pessoas iam mascaradas a pé pelas ruas e provocavam prazer às pessoas que saíam à rua para as ver passar. Mas todas essas festas realizavam-se à noite.
«No baile dos Derbianos a farra ferve. […] Há fantasias de vários gostos, todos têm que ostentar a legenda do Derby. Levantou-se uma grande rivalidade com o grupo Baiano.» (Lopes, 1997: 125)
As rivalidades que pudesse haver entre os grupos, muitas vezes eram suscitadas por ciúmes, por este ter conquistado as melhores damas ou ter o melhor conjunto, ou disputado a sala de bailes que já se tinha palavrada com o dono. Tudo isto era motivo para rivalidades, que não passavam de um Carnaval para o Carnaval seguinte.
«Chega um grupo de gangsters. Fazem irrupção na sala. […] Voltou o Carnaval. O cinema local transportou-se para a sala de baile dos Derbianos. Assaltos a bancos. Kidnapers. Ruídos de pistolas disparadas. Cenas muitas vezes observadas nos filmes são reinterpretadas nos salões por grupos de foliões […] Grupos passam na rua cantando. Da janela observo os vultos apressados acompanhando o violão. Cantarola pegada de marcha carnavalesca. Enquanto isto se passa nas ruas e nas salas dos clubes e associações, onde a classe mais humilde se divertia, os senhores da elite iam ao cinema ver Charlot, que passava quase todos os anos pela mesma ocasião, no cinema Éden Park, durante os fins- de-semana que antecediam a terça-feira de Carnaval.» (Lopes, 1997: 129-131)
Actualmente, nos grupos, em geral, pode dizer-se que militam trabalhadores tradicionais de pequenas empresas, operários, empregados de pequenas lojas e casas comerciais, de mercearias, empregadas domésticas, mecânicos de oficinas de reparação de automóveis, serralheiros estivadores e muita gente desempregada que vive de biscates, mulheres que trabalham fora dos circuitos do salariado.
São grupos abertos, sem uma organização rígida. Pode dizer- -se que são associações abertas onde a entrada não obedece a nenhum tipo de impedimento ou selecção. Nestes grupos peque-nos é pelo convívio e pelo conhecimento directo no bairro de pertença que se inscreve para o desfile. Estes grupos escapam ao eixo da hierarquização quotidiana. São grupos, quase sempre, do tipo comunistas, no sentido que Turner (1974) dá ao termo, onde o espírito, ou mesmo a ideologia de bairro domina, com o seu emaranhado de relações sociais e familiares, agrupados por simpatias pessoais. São os dos bairros da Ribeira Bote, Fonte Filipe, Fonte Francês, Fonte Inês, Monte Sossego, Bela Vista, Campinho, Cruz, entre vários.
Outros grupos, como o Samba Tropical ou Os Vindos do Espaço, semi-urbanos, não são abertos a todos, como se pode ver; a ordem de entrada é normalmente feita por convites. São grupos onde domina essencialmente a beleza e o luxo. A maior parte dos que desfilam veste-se de uma maneira refinada e significativa: são estudantes da Escola Técnica, dos Liceus, gente jovem da classe média que trabalha duro para ter as filhas vestidas com gosto; é um sacrifício, meninas bonitas do povo escolhidas a dedo, observadas nos lugares de trabalho, nos vários lugares de atracção, nos convívios públicos, ou aliciadas e «roubadas», como se diz, aos grupos de pertença. Muitas vezes, as damas, como são chamadas, são abordadas na rua, sendo convidadas pessoalmente.
A emigração contribuiu para o empobrecimento do carnaval, principalmente aquando do contrato para os trabalhos nas roças de S. Tomé, nos anos 50, que provocou uma sangria em S. Vicente. É assim que Onésimo Silveira (1962), no seu poema Hora Grande evoca e convoca todos aqueles que tinham conhecido uma das grandes damas dos bailes do Mindelo, Têteia, moça alegre, cheia de vida, voluntariosa porque bonita, para irem com ele, para junto do mar reclamar o seu desaparecimento e exigir que no-la devolvessem . Aqueles que tinham consigo a alegria e o prazer da festa, porque o tinham herdado dos seus. E os mais criativos é que saíram, por necessidade, à procura de uma vida melhor e levaram consigo a sua grande capacidade, o seu saber e a sua arte. Como se vê, são filhos e filhas de gente humilde, mulheres de gira, isto é, vendedeiras, com os seus balaios (cestas) ambulantes, que de esquina em esquina, vendiam cuscuz, pão, mel doces, rebuçados, e de homens da estiva (os catraeiros).
Mesmo alguns dos que regressaram já não possuem aquele fulgor de outros tempos. Alguns, em memória dos sítios por onde passaram trouxeram alguma amostra cultural dessas terras, como de Angola, como se poderá ver no traje e por alguns movimentos de dança que executam. Pelo Carnaval gostam de se vestir de panos garridos à maneira do Sul de Angola.
Desde cedo entre os pequeninos, o Carnaval do Mindelo retrata a bipolarização do dinheiro: as famílias com dinheiro e as carenciadas economicamente, que é o caso da grande maioria da população de S. Vicente. Esse Carnaval denuncia também os conflitos latentes nessas camadas sociais, onde o ter começa a tomar lugar e a querer pela primeira vez dominar. Não obstante esses conflitos, mais da ordem do ter do que do ser, a nota dominante é a alegria, a hilaridade que se revela através das mestiças claras ou escuras, de todas as camadas num convívio universal ímpar.
A iniciação ao Carnaval em S. Vicente começa cedo, nas escolas ou bairros onde as crianças aprendem a reciclar desperdícios. Aquelas com algum desafogo vestem-se consoante as posses dos papás que acompanham os pequeninos, com prazer, durante o desfile pelas ruas ou praças, que adoram passear as suas fantasias, nos dias que antecedem a terça e a quarta-feira. Desde a última quinta-feira anterior aos dias máximos do Carnaval, saem desde crianças dos jardins escolas às crianças da primária e jovens dos liceus. Cada um veste-se como pode. Nos jardins onde se pretende criar um espírito da humildade, da igualdade e da contenção no esbanjamento, as professoras, as monitoras e as crianças dão lições de entreajuda e de poupança, reciclando, criando e fazendo com as próprias mãos.
De uma maneira geral, cantam as cantigas brasileiras mundialmente conhecidas. Saltam, riem. Numa palavra, enchem a cidade da alegria de viver. As crianças do Mindelo, nesse dia, estão felizes. Habitualmente, aos domingos, elas dançam à roda de mãos dadas, à volta de um coreto, num jardim público, quando a banda municipal toca. Elas são brancas, negras, loiras caboverdianas, suecas ou eslavo-caboverdianas. O Carnaval é sentido e vivido primeiro dentro da família e na escola, logo a seguir como um dever, como uma obrigação, na cidade.
Trazem também os seus andores; os seus motivos são os da área do património natural e cultural tradicional, dos hábitos e costumes, constituindo verdadeiras aulas de ciências integradas, dadas em plena rua da cidade. O azul do mar das ilhas, tão cantado pelos seus poetas, espraia-se pela cidade. Esta arte é produto de artistas mindelenses, como o Nóia, (Fernando Lopes Morais) o Bitú, (Alberto Alves) o Manú Rasta (Manuel Cabral) e o Ró (António Cruz), que se associam às escolas e às organizações de mulheres para darem esse prazer às crianças das escolas. Lamentável é que seja proporcionado apenas às crianças enquadradas em escolas. É este último (o Ró) que iremos seguir num Carnaval de crianças e depois no Samba Tropical, para o escutar e deixar a câmara passear pelas suas obras espalhadas pela cidade ou no seu ateliê, no bairro da Bela Vista.
Existem ainda as crianças da ma que também se organizam, representando forças obscuras da natureza, como zumbis ou outros elementos dos subterrâneos da natureza humana.
O Carnaval do Mindelo é referenciado por todos os que tenham vivido em Cabo Verde, ou todo aquele, nacional ou estrangeiro, que se tenha deslocado ao Mindelo, de propósito, com o fim de o assistir, não só por aquilo que dele se diz nas comunidades e nos roteiros turísticos, cheio de histórias e facécias , como também pelas interpretações, ora pondo acento na tradição, nas histórias perdidas do passado da sua cidade, da sua gente e do seu Porto Grande no centro do Atlântico, ora na modernidade dos assuntos internacionais que nele têm repercussão, trazendo sempre um ar fresco de modernidade. Tudo isto faz com que o fenómeno da festa mereça ser contextualizado.
A cidade do Mindelo, com uma população de 67 844 habitantes, aberta constantemente às constantes migrações provenientes das ilhas vizinhas, essencialmente rurais, é na actualidade cada vez mais uma cidade com grandes e complicados bairros suburbanos, povoando-se de bidonvilles. O seu dinamismo social e ideológico é tão proverbial como a sua morabeza, e daí o seu epíteto de Cidade da Morabeza.
Quase toda a cidade entra no Carnaval e vive durante o dia um ritmo extasiante que toma posse de toda a gente e a que ninguém consegue furtar-se. O frenesi que se apodera da cidade e de todos faz lembrar pessoas possessas. É o que Agier (2000: 35) caracteriza por «un état sensible, correspondant dans la pratique à ce que la théorie désigne par la notion de liminarité», possessão provocada pela dança, que leva os participantes activos ou passivos a dar saltos, gritos ao som das baterias, mesmo que não estejam fantasiados, com roupa própria de festa, e que estejam entre os inúmeros espectadores atraídos por ela. Às vezes, basta pintar a cara, ter uma maquilhagem mais exagerada de maneira a «parecer outra pessoa, bem arranjada com gosto», para se sentir dentro da festa. Cumpre-se assim o ritual do disfarce (Caradec, 1977), do estar presente sem constar, em que se perde a noção do eu-isolado para só contar o eu-colectivo irresponsável, integrativo, porque o estado gerado é o do caos promíscuo. Dá-se então a ruptura com o quotidiano, no espaço da loucura colectiva, onde normalmente é o da ordem, com polícias fiscalizando o comportamento, a compostura do cidadão.
Nos anos 40 toda a gente se mascarava, e a euforia era maior. Os que não pertenciam a nenhum bloco, saíam e ainda saem sozinhos, isolados ou em pequenos grupos mascarados ou fantasiados conhecidos por mascrinhas, isto é, foliões, que eram engolidos pela multidão ululante de mirones, muitas vezes, como se de alguma tribo se tratasse. Na maior parte das vezes, trazem máscaras de comediante, de farsante, de travesti, daí o nome. É uma figura e uma denominação antiga. Tudo se passa no domínio do lúdico, do divertimento, do artístico, do decorativo naif dos quadros sentimentais.
O retrato que se faz da cidade do Mindelo é o de uma cidade cheia de vida, de dinamismo no fim da semana, depois de uma semana vivida quotidianamente de labuta pelo pão de cada dia, no porto ou na cidade.
E nesta linha de ideias que o escritor Aurélio Gonçalves recorda um baile, numa tarde qualquer, de um mês qualquer, levado a cabo pelo grupo carnavalesco «Estrela do Mindelo, grupo recreativo, deu um baile no Monte. Foi um bom baile, do qual todos guardavam uma recordação excelente. Sala bem iluminada e a orquestra do Damião tocou como nas suas melhores noites. Havia um grupo de pequenas seleccionadas, bebidas à vontade, com um grogue de primeira e um churrasco digno dos tempos antigos. Assim reinou um entusiasmo excepcional. As raparigas, bem conhecidas, tinham todas um sorriso e era um rodopiar de corpinhos bem feitos e de vestidos de cores vistosas. Os rapazes não se lembravam de tantos requebros, de tanta doidice feita e murmurada, de tanto riso» (1970: 5-6). É pois esse o ambiente do Mindelo, durante o ano nas noites de lazer, tanto urbanas como suburbanas.
O Carnaval Mindelense realiza-se durante três dias, mas pode dizer-se que, verdadeiramente, ele se realiza durante vários dias, concentrando-se o momento mais festivo, contudo, do Sábado à Terça-Feira da Quaresma, para tudo acabar na Quarta-Feira, dia do enterro do Carnaval, expressão que ainda hoje perdura, apesar de já não se realizar o tal enterro. Bailes realizam-se no Sábado enquanto grupos de pequeninos das escolas primárias desfilam pelas artérias principais do centro da cidade, no Domingo, mascarados saem de rua em rua fazendo correr as crianças e metendo medo às mulheres que fogem dando gargalhadas e «gritinhos» de medo e prazer quando as máscaras as perseguem, criando o pânico nas ruas da cidade. Na Segunda-feira um grupo carnavalesco do tipo de escolas de samba brasileiras desfila pelas ruas principais e centrais do Mindelo, para na Terça-feira então saírem os grupos carnavalescos com estruturas próprias mais ou menos organizados e os figurantes. Actualmente, chama-se figurantes as pessoas isoladas e não integradas em qualquer grupo de animação, em oposição aos grupos organizados e estruturados que desfilam e participam oficialmente na competição e no concurso.
O desfile mais apreciado é o dos grupos com nomes já feitos, que se podem considerar núcleos do desfile para a competição. Quando esses grupos, por qualquer motivo de política nacional — eleições —, não se organizam para o desfile, então, para uma determinada camada social não houve carnaval. Para essa camada social que começa a ser grande, o tradicional, o popular é apenas animação. Aqui entram dois critérios de apreciação: o carnaval, luxo e cor, exibição do corpo, do «bem feito», o carnaval espectáculo dos grupos que desfilam apenas para o concurso, que têm um enredo, e o tradicional, curiosa¬mente conservando aspectos ainda perto do entrudo «medieval ibérico» (Crowley, 1984). Apesar das modificações sofridas a partir do anos 40 do século passado, ainda conserva os seus palhaços, travestis, que atiram farinha ou um tipo de fuligem para cima dos espectadores/mirones, e usam bisnagas de água suja ou lama (o que hoje já é proibido, por causa de abusos), que criticam as instituições, que subvertem a moral pública, que provocam pelo inusitado e pela surpresa do acontecer nunca imaginado.
E a gente do povo, gente da classe pobre, sem formação escolar, ou com pouca escola, como diz Aurélio Gonçalves «rapazes e raparigas, gente de muitos ofícios, alguns emprega¬dos, outros com vida no ar, sem ocupação» (1956: 16), trabalha¬dores manuais, gente sem hipóteses de passagem de classe, que mora em sítios degradados, nos seus casinhotos ou em pequenas casas de alvenaria ou blocos de cimento, sem rebocos ou sem serem caiadas e que, nessas alturas, do subúrbio e dos montes (morros) periféricos, descem à cidade e pode dizer-se que o sonho se realiza e transparece, «nos olhos bonitos da crioula fantasiada de rainha, ou princesa das mil e uma noites, bailarina ou sereia, que marcou encontro no asfalto, pisando-o com garbo, elegância e harmonia na cadência maravilhosa do samba e da marcha. E diz-nos em requebros bem pronunciados e belos, da mágoa e da alegria de ser mulher toda a vida e rainha apenas nas escassas horas em que pisava o asfalto. Não foi apenas a beleza que desceu à cidade. Foi a arte do povo. A imaginação rica do povo. A capacidade imaginativa dos artistas anónimos que anual-mente falam de si numa linguagem surda, despretensiosa, mas rica, através dos andores e dos figurinos que conceberam.» (Rodrigues, 1986: 7) Ou, como diz o poeta Jorge Barbosa em Terça-feira de Carnaval.
Era tudo miragem
era tudo sonho daquela noite,
a vossa única oportunidade de serdes felizes
durante horas.
[…]
Fadas de noutes misteriosas
onde estão as vossas túnicas, de estrelas, luas e céus maravilhosas?
[…]
Era tudo miragem
era tudo sonho/ era tudo tão bom!